A luz tingia com um halo divino os cabelos negros de Dayon. As paredes do seu gabinete, cobertas de folhas de ouro sobre madeira, eram quase cobre na luz do entardecer. Os raios de sol oblíquos caíam pelas flores geométricas da gelosia. Uma cadeira, uma mesa, e uma estante de pergaminhos, todos alinhados com perfeição.
Dayon debruçado sobre um pergaminho, a pena suspensa sobre o pote de tinta.
— Senhor — chamou a mulher que me tinha acompanhado, ao longo de corredores e salões.
Só aí ele levantou o olhar. Pousou a pena.
A mulher fez uma leve vénia e abandonou-me. Eu sentia-me a flutuar. Antes de comparecer ao gabinete tinham-me servido comida em abundância, vinho. Pensava que me iam dar uma bacia com água, mas tinha sido conduzida a uma sala com uma autêntica piscina quadrangular, a água aquecida por algum milagre da terra. Deram-me uma veste simples, quase um retângulo de tecido, de cor ocre. Caía-me largo pelo corpo abaixo. Dificilmente se comparava às camadas de tecido que os homens do Conselho e aquele que me interrogara primeiro usavam.
— Asseri.
Reparei que não havia sítio em que me pudesse sentar. Apenas podia ficar de pé, fitando-o.
— Queria que escrevesses algo.
Ele levantou-se, deixando a sua cadeira vaga e indicou-me a secretária.
Eu reproduzi, no melhor que pude, uma frase de um hino fúnebre que tinha lido na Biblioteca de Thimae.
— A tua gramática podia ser melhor — disse ele, e embora não o visse senti o sorriso na sua voz.
— Lamento, mas esta não é a minha língua.
— Escreve lá, então, na tua língua.
Eu escrevi. Ele debruçou-se sobre a tábua da ardósia.
— O que é isto?
— O alfabeto é diferente, senhor.
— O que diz aí?
Eu repeti, na língua de Thimae:
— Oquo maften zatar.
A água flui para a raiz.
— É um ditado em Thimae.
— Mas esse nome… esse nome. Thimae. Parece um nome típico de Hilagié. Da nossa terra.
— Nos meus estudos, foi-me possível concluir que a nossa língua é herdeira da Língua Antigas. Tirai daí as conclusões que desejardes.
— Então, vieste de um reino com um nome que ninguém conhece e além disso afirmas que vocês são, na verdade, parentes próximos destas nossas terras? O que explica a nossa ignorância em relação a vós?
Eu fiz uma pausa.
— A barreira.
Levantei os olhos da tábua. Dayon levantara uma sobrancelha.
— A barreira?
Eu engoli em seco. Já estava a dizer demasiado. Mais do que devia dizer. Mas… Poderia contornar a verdade.
— Existe um obstáculo geográfico entre Thimae e estas terras. Outros viajantes não sobreviveram à travessia.
— Um obstáculo geográfico? Uma cadeia montanhosa? Um desfiladeiro?
— Sim.
Desviei o olhar para as curtas linhas que tinha escrito. Esborratei uma das letras com o dedo.
— Sabes, que eu sou o único membro do Conselho inclinado a dar-te o benefício da dúvida em relação a esta história mirabolante que me decidiste contar. Podes continuar com estes jogos, ou podes simplesmente dizer-me a verdade.
— Senhor, eu…
Dayon afastou-se da secretária, segurando o pulso direito com a mão esquerda atrás das costas. A túnica arrastava pelo chão.
— Não tens família nesta cidade. Nem ligações. Nem bens. Nem moeda. Se te considerarem apenas uma mulher com uma imaginação fértil… na melhor das hipóteses, acabarás em liberdade nas ruas de Athyke, a mendigar por um pedaço de pão.
— Não, o melhor cenário possível é regressar a casa.
— De certeza?
Ele fitou-me, aquele olhar negro e implacável de um homem consciente do seu poder e da sua posição. Mordi a ponta da língua. O rei… Era essa a verdade, não era? Izuf tinha-mo dito. O rei enviava-me para a morte. Se eu voltasse…
— Talvez não — admiti, num murmúrio.
— Então é isso. Mais uma indigente nas ruas de Athyke, ou pior, uma escrava.
— Uma escrava? — A minha voz ecoou no gabinete.
— Pareces surpreendida.
Dayon encarou-me. Parecia querer avaliar se o meu choque era genuíno ou não. Em Thimae, a escravatura tinha sido abolida há cerca de um século atrás, durante a Grande Reforma.
— A mulher que me trouxe até aqui…
— Sim, ela é uma escrava. Mas os escravos do Palácio são bem tratados.
— A liberdade vale mais do que um quarto num palácio.
— Desafio-te a dizeres o mesmo quando não tiveres um teto sobre ti.
— Isso é apenas uma fraca justificação para a vossa imoralidade.
— Preferias, então, a morte à escravatura?
— Claro que preferia.
Dayon inclinou a cabeça, mas não disse nada. Na sua expressão diplomática, havia um resquício de genuína irritação.
— Por favor, diz-me a verdade, para poder evitar quaisquer uma dessas alternativas.
— Lamento, mas já o fiz. Se desejais perguntar-me mais sobre o reino de Thimae, podeis. O nome do meu rei, os nossos costumes…
Ele ergueu uma mão.
— Penso que já foi suficiente. Dentro de doze dias, serás julgada pelo Conselho. Um privilégio que poucos têm. O Juiz Maior estará presente. Apresenta, até lá, uma história mais convincente.
— Qual é a pior das hipóteses?
— Perdão?
— Dissestes que se me acharem apenas uma mulher louca…
— Na pior das hipóteses, vais ser declarada uma ameaça para a segurança de Athyke, e como tal deves ser aprisionada.
— Nas catacumbas.
Dayon fitou a estante de pergaminhos, como se eles fossem capazes de falar e de lhe oferecer as respostas que procurava.
— Eu vou defender perante os restantes membros que, embora de proveniência duvidosa, os teus conhecimentos e capacidades são inegáveis. Poderias ser uma boa escrava do Palácio.
Eu senti o sangue subir-me ao rosto. Levantei-me, com pouca elegância.
— Se é essa a sugestão que ides fazer, passo bem sem o vosso precioso auxílio. Senhor.
Fiz uma vénia e saí. Tinha a respiração acelerada.
Quem é que ele pensava que era?
Embora a resposta fosse óbvia—um homem com o poder de me condenar ou de me salvar. E ele sabia-o.
E segurava isso sobre o meu pescoço como uma espada.